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CONTEÚDOS
Estudo da fauna de insetos da Beira Interior
Gaspar 2023
Coleção entomológica FLOWer lab CULTIVAR
Gaspar 2023
As novas espécies de polinizadores descobertas na Beira Interior
Gaspar 2023
Estudo da fauna de insetos da Beira Interior
Hugo Gaspar
FLOWer Lab, CFE-TERRA, DCV-FCT Universidade de Coimbra
A IMPORTÂNCIA DOS INSETOS EM AGROECOSSISTEMAS
Os insetos são o grupo de organismos com mais espécies conhecidas no planeta e isso traduz-se na multiplicidade de interações que influenciam o funcionamento dos ecossistemas. Em Portugal esta diversidade é também muito elevada, muito por conta do território continental inserido no hot spot de biodiversidade mediterrânico.
As espécies que podem existir em cada local estão altamente associadas aos tipos de habitats e condições edafoclimáticas presentes. Em regiões onde a produção agrícola representa uma percentagem significativa da paisagem em conjunto com outros habitats naturais e humanizados (agroecossistemas), existe um grande potencial de diversidade e abundância de insetos, especialmente num contexto como a da Beira Interior.
O contexto particularmente favorável da região deve-se ao facto de existir uma elevada complexidade e conetividade da paisagem, com uma elevada representação de áreas naturais e seminaturais em conjunto com agricultura, silvicultura e tecido semiurbanas. É nestas circunstâncias que milhares de espécies de insetos encontram as condições para o seu desenvolvimento larvar e adulto (que podem ser muito distintos), interagindo com o ecossistema de forma significativa. É possível definir grupos de insetos chamados grupos funcionais, que apresentam funções semelhantes no ecossistema, que se traduzem em serviços dos ecossistemas especialmente importantes em agroecossistemas, como a polinização, controlo biológico ou a reciclagem de nutrientes.
ESTUDAR AS COMUNIDADES DE INSETOS
Durante o projeto CULTIVAR, o FLOWer Lab realizou vários trabalhos com o principal objetivo de estudar a dinâmica dos serviços de polinização fornecidos pelos insetos polinizadores na paisagem da Beira Interior.
Para o efeito, é necessário fazer a colheita de espécimes no terreno, já que os insetos são na grande maioria dos casos, apenas identificáveis à espécie com recurso a lupa de laboratório que permita a análise detalhada dos caracteres morfológicos. Este nível de detalhe é necessário para determinar exatamente as necessidades e funções dos insetos e melhor personalizar medidas de gestão e conservação.
Dependendo dos objetivos dos diferentes estudos, foram realizadas observações de interações planta (flor) e polinizador, com capturas pontuais ou com capturas representativas destas interações para identificação do inseto e/ou identificação do pólen que transportam entre flores no corpo, permitindo criar um mapa de ligações entre polinizadores e as plantas da paisagem. Outro método usado recorrentemente no decorrer do projeto foi a captura com rede entomológica em transeptos aleatórios sobre recursos florais dentro de áreas delimitadas por tipo de habitat. Este método permite uma amostragem bastante satisfatório da comunidade de insetos, criando a oportunidade de estender a análise dos polinizadores para outros grupos funcionais que também são capturados.
Figura 1. O método de amostragem com rede entomológica sobre recursos florais foi um dos principais métodos utilizados (à esquerda). Após colheita, os insetos eram processados e montados com recurso a alfinetes, pinça e uma placa de esferovite onde secavam durante uma a duas semanas até estarem prontos para incluírem a coleção (direita).
Todos os insetos amostrados são primeiramente preservados por congelação até serem processados no laboratório, onde todas as espécies são contabilizadas ao indivíduo e representadas por espécimes preparados em coleção de referência (o sobrante é preservado em álcool). Segue-se a identificação em laboratório, recorrendo à análise de estruturas morfológicas dos espécimes à lupa, terminando com a atribuição de uma espécie, género ou família.
POLINIZADORES
O grupo funcional que participa na polinização é particularmente diverso, mesmo considerando apenas os principais grupos: abelhas, moscas das flores (ou sirfídeos) e borboletas diurnas. Estes três grupos são tratados de forma especial por serem os organismos que têm maior probabilidade que transferir de forma eficiente o pólen entre plantas da mesma espécie (cada espécie de planta tem mecanismos de reprodução diferentes), fornecendo um serviço de polinização. Este processo é vital para o funcionamento dos ecossistemas terrestres, através da manutenção da grande maioria das plantas com flor e também é vital para a segurança alimentar humana, já que permite a formação de frutos e sementes da maioria das culturas agrícolas.
As abelhas são o grupo de polinizadores por excelência porque são os únicos organismos que recolhem pólen ativamente, transportando-o no corpo para depositar nos ninhos, (o néctar também é consumido) fazendo-o de forma generalista em relação às espécies de planta que colhem, ou de forma especializada, podendo até colher de apenas uma espécie de planta. Este grupo apresenta quase 750 espécies em Portugal, onde apenas 12 espécies vivem em colónia (sociais) e apenas uma produz mel (abelha do mel); a maioria é solitária, em que a fêmea após acasalar, constrói um ninho e colhe pólen para a descendência num raio em volta do ninho que na maioria dos casos é inferior a 500 metros.
Além da dieta (caracterizada pelo pólen que colhem para a descendência - generalista ou especializada – os adultos alimentam-se de néctar), as espécies diferem noutros aspetos da sua ecologia como o tipo de nidificação (no solo, cavidades, madeira, caules ou em superfícies expostas), na época de voo (essencialmente entre janeiro e setembro, cada espécie está ativa maioritariamente num período característico de 2-4 meses todos os anos – espécies de início, meio ou fim de época), tipo de vida (sociais, solitário ou também parasitas de outras abelhas, todas polinizadoras) ou distribuição no território.
Figura 2. A abelha mais comum na região – Lasioglossum malachurum é uma das centenas de espécies presentes no território. Com aproximadamente 8 mm, é uma espécie que nidifica no solo plano, voa durante grande parte da época e tem uma dieta generalista, muitas vezes observada em culturas agrícolas. Foto de Michel Ehrhardt e terraincognita96.
As moscas-das-flores, por sua vez, são um grupo dentro das moscas pertencentes à família Syrphidae, que tem mais de 200 espécies em Portugal. Estes insetos visitam ativamente as flores em adultos para consumirem pólen e néctar. Em adultos são altamente móveis, muitas vezes migradoras, buscando micro-habitats na paisagem com as condições favoráveis para acasalar, alimentar-se e depositar os ovos e cada espécie voa maioritariamente num período característico de 2-5 meses todos os anos.
As formas larvares são livres e dependendo da espécie podem ser predadoras - alimentando-se de outros invertebrados como pulgões e servindo como controlo biológico (preferindo áreas com vegetação desenvolvida), detritívoras – consumindo matéria orgânica em decomposição, muitas vezes em condições semiaquáticas, participando na reciclagem de nutrientes (na maioria preferindo zonas húmidas como charcos temporários, mas também florestas naturais bem preservadas) ou herbívoras – consumindo maioritariamente bolbos ou folhas.
Figura 3. Entre as moscas-das-flores mais comuns está Sphaerophoria scripta que visita ativamente um grande número de espécies de plantas e durante o estado larvar (direita) é predadora de pulgões, servindo como controlo biológico. Foto de Steven Falk e Vlinderlin.
As borboletas diurnas são um conjunto de famílias (Papilionoidea) que está representado em Portugal por quase 150 espécies. Os adultos são frequente observados a alimentar-se de néctar nas flores e à semelhança das moscas-das-flores, são muito móveis, realizando em alguns casos migrações. Têm um período de voo específico de cada espécie de alguns meses. Os ovos são depositados em plantas hospedeiras específicas de cada espécie e as larvas são livres, alimentando-se da planta.
Figura 4. A Vanessa atalanta é uma espécie muito fácil de observar, é migradora e alimenta-se em urtigas. Foto de ctaklis e Vince Massimo.
Outros grupos de insetos podem participar na polinização como escaravelhos, percevejos, outras moscas, borboletas noturnas, entre outros, mas a sua interação é muitas vezes menos consequente para a polinização por fatores vários, em grande parte dos casos devido a mobilidade limitada entre flores. Estes grupos têm um papel mais evidente noutro tipo de interação com o ecossistema, como seja herbivoria, predação, parasitismo ou detritívoro.
Coleção entomológica FLOWer lab CULTIVAR
Hugo Gaspar
FLOWer Lab, CFE-TERRA, DCV-FCT Universidade de Coimbra
A IMPORTÂNCIA DAS COLEÇÕES ENTOMOLÓGICAS
O estudo de insetos passa em grande parte por espécimes preservados em coleção, permitindo o seu manuseamento e observação em condições ótimas. Graças á estrutura rígida externa do corpo de grande parte dos insetos adultos, estes podem ser mantidos desidratados em alfinetes durante várias centenas de anos.
O processo de identificação à espécie em espécimes de coleção é em grande parte feito a observar caracteres morfológicos externos distintivos com recurso a lupa, utilizando literatura taxonómica e comparação com material de referência. Para isto requer-se a preparação dos espécimes correta para que os caracteres sejam visíveis e em alguns grupos é mesmo necessário extrair partes ocultas do corpo no momento da montagem, como é o caso da genitália dos machos de alguns géneros de abelhas e moscas-das-flores. A identificação produz uma ocorrência associada a um espécime e tem um valor muito maior que uma ocorrência de exclusivamente observação na natureza já que na coleção a ocorrência é revisitável, pois em qualquer momento um especialista pode estudar o espécime.
Os espécimes presentes em coleções são assim o principal elemento de estudo na área da taxonomia de insetos, que permite identificar e organizar as espécies existentes. Uma das funções de uma coleção é que esteja acessível a especialistas que possam rever e fazer avançar o conhecimento sobre as espécies.
As coleções permitem a existência de material documentável para a realização de sequenciação de ADN que associa sequências genéticas a espécimes e espécies, através da colheita de amostras biológicas de espécimes (como por exemplo, uma pata). Esta área de estudo usa esta informação para clarificar o estatuto e a relação entre espécies, contribuindo para o evoluir da taxonomia.
Em Portugal, as maiores coleções dos principais grupos de polinizadores (abelhas, moscas-das-flores e borboletas diurnas) encontram-se nas universidades de Coimbra, Lisboa e Porto, e no cômputo geral ainda têm um caminho de catálogo e/ou revisão de material pela frente, para que a informação esteja satisfatoriamente organizada e documentada.
A COLEÇÃO FLOWer Lab CULTIVAR
Durante os trabalhos realizados em 2021 e 2022 no âmbito e área de estudo do projeto CULTIVAR pelo FLOWer Lab, foram amostrados mais de 30 000 espécimes dos quais 3 800 foram incluídos na coleção FLOWer Lab, Universidade de Coimbra. Relativamente aos principais grupos de polinizadores estão incluídos 2 485 espécimes de abelhas, 225 moscas-das-flores e 41 borboletas diurnas.
As novas espécies de polinizadores descobertas na Beira Interior
Hugo Gaspar
FLOWer Lab, CFE-TERRA, DCV-FCT Universidade de Coimbra
A IMPORTÂNCIA DE NOVOS REGISTOS
À exceção de países com grande tradição naturalista no centro e norte da europa, o conhecimento sobre a distribuição e tendências populacionais dos insetos é relativamente pobre na europa. Portugal é um dos exemplos em que ainda existe um longo caminho a percorrer para que exista informação satisfatória sobre grande parte dos grupos de insetos.
No contexto dos polinizadores, onde as abelhas, as moscas-das-flores e as borboletas diurnas se destacam, as borboletas diurnas são o único grupo relativamente bem documentado em Portugal. O conhecimento sobre as nossas abelhas e as moscas-das-flores tem um elevado potencial, começando pela ocorrência e distribuição de espécies, sendo expectável que aumente consideravelmente com investimento do seu estudo à escala regional e nacional. Após a primeira deteção de uma espécie é necessário cimentar a informação disponível relativamente á sua distribuição e por fim em relação às suas tendências populacionais com vista a efetivar medidas de gestão e conservação.
No âmbito do projeto CULTIVAR, foram estudados ao nível da espécie todos os insetos polinizadores colhidos durante as diferentes amostragens primariamente focados na ecologia da polinização, mas inevitavelmente contribuiu para o conhecimento fundamental dos insetos.
Os novos dados produzidos, além de contribuírem para o conhecimento regional, com listagens detalhadas (ver primeiro artigo), constituíram em alguns casos novas espécies para Portugal, na maioria anteriormente reportadas na Península Ibérica ou em países circundantes ou até novos para a ciência, e que são descritos pela primeira vez após a sua descoberta.
Andrena lusitania, NOVA ESPÉCIE PARA A CIÊNCIA
Esta espécie que pertence ao maior género de abelhas existente na Península Ibérica, conta atualmente com 128 espécies em Portugal. A sua descoberta ocorreu durante as colheitas realizadas em transepto aleatório com rede entomológica por recursos florísticos. Em particular, colheu-se um macho em meados de Março de 2021 no interior de uma área seminatural inserida numa exploração de Cereja e Pêssego em Vale de Prazeres, Fundão.
A sua descrição é feita em Junho de 2022 por Thomas Wood e Francisco Ortiz-Sánchez com base neste macho (holótipo) e também uma fêmea (parátipo) colhida em 2006 em Sevilha - Espanha, sendo que já foi vista entretanto também em Marrocos. Após a sua descrição, foi recapturada ainda no âmbito do projeto CULTIVAR, uma fêmea em Março de 2022, em Capinha, Idanha-a-Nova, nas margens de uma exploração de Amêndoa.
A Andrena lusitania é uma abelha selvagem solitária que nidifica contruindo túneis em solo plano exposto. Pertence ao subgénero Taeniandrena, que apenas utiliza pólen colhido em flores da família Fabaceae para alimentar a sua descendência, apesar de poder buscar néctar noutras plantas. Nos locais onde foi encontrada na Beira Interior, uma das principais plantas da família Fabaceae em flor na sua época de voo (Março-Abril) é Cytisus multiflorus (Giesta-branca).
Figura 1. Nova espécie de abelha descoberta no âmbito do CULTIVAR, Andrena lusitania, fêmea e macho. Fotografias de Wood & Ortiz-Sánchez 2022.
ABELHAS
No que diz respeito ao grupo mais eficaz de polinizadores no contexto mediterrânico, foram identificadas no âmbito do CULTIVAR, 7 espécies nunca observadas em Portugal: 5 delas solitárias, Andrena (Chlorandrena) elata, Andrena (Euandrena) ramosa, Andrena (Micrandrena) lecana, Andrena (Micrandrena) pauxilla e Macropis (Macropis) fulvipes e 2 parasitas, Nomada mocsaryi e Stelis minuta.
Quanto às 5 abelhas solitárias, todas são nidificantes no solo e apresentam algumas especificidades quanto à sua dieta floral: A. elata é especialista em Asteraceae, A. lecana em Brassicaceae e M. fulvipes em Lysimachia (Primulaceae), enquanto que A. ramosa e A. pauxilla ainda não têm dietas descritas. Relativamente às 2 espécies parasitas, para N. mocsaryi o hospedeiro é desconhecido (geralmente o género Nomada parasita os géneros Andrena ou Lasioglossum) enquanto que para S. minuta parasita várias espécies de Hoplitis, Heriades, Osmia ou Chelostoma.
Figura 2. Cinco das sete espécies de abelhas novas para Portugal, da esquerda para a direita: Andrena elata (fêmea) em cima, Stelis minuta (fêmea) em baixa, Andrena pauxilla (fêmea) no meio, Andrena ramosa (fêmea) em cima, Macropis fulvipes (macho) em baixo. Fotografias de Wood et al. 2023, Wood et al. 2022, Tim Faasen e Gilles San Martin.
MOSCAS-DAS-FLORES
A lista de novidades para Portugal produzidas para a família Syrphidae no âmbito do CULTIVAR inclui 4 espécies, todas pertencentes a géneros pouco vistosos: Orthonevra geniculata e três endemismos ibéricos, Orthonevra arcana e Cheilosia limbicornis e Chrysogaster coerulea.
As espécies O. geniculata e O. arcana alimentam-se durante o estado larvar de matéria em decomposição em pequenos redutos de água. Não se conhece o desenvolvimento larvar de C. limbicornis e C. coerulea, no entanto, á semelhança de outras Cheilosia, C. limbicornis deve alimentar-se de caules ou raízes de plantas silvestres enquanto C. coerulea, à semelhança de outras Chrysogaster, deve alimentar-se de matéria em decomposição em ambientes semi-aquáticos. Todas estas espécies se alimentam em flores durante o estado adulto, participando ativamente na polinização.
Figura 3. Três das quatro espécies de moscas-das-flores novas para Portugal, da esquerda para a direita: Orthonevra geniculata (fêmea), Orthonevra arcana (macho) e Chrysogaster coerulea (macho). Fotografias de Prokhorov et al. 2018 e Ricarte et al. 2022.